Escrevivendo e Photoandarilhando por ali e por aqui

“O que a fotografia reproduz no infinito aconteceu apenas uma vez: ela repete mecanicamente o que não poderá nunca mais se repetir existencialmente”.(Roland Barthes)

«Todo o filme é uma construção irreal do real e isto tanto mais quanto mais "real" o cinema parecer. Por paradoxal que seja! Todo o filme, como toda a obra humana, tem significados vários, podendo ser objecto de várias leituras. O filme, como toda a realidade, não tem um único significado, antes vários, conforme quem o tenta compreender. Tal compreensão depende da experiência de cada um. É do concurso de várias experiências, das várias leituras (dum filme ou, mais amplamente, do real) que permite ter deles uma compreensão ou percepção, de serem (tendencialmente) tal qual são. (Victor Nogueira - excerto do Boletim do Núcleo Juvenil de Cinema de Évora, Janeiro 1973

sexta-feira, 10 de março de 2017

Uma ode à fotografia

CRÍTICA DE LIVROS



Nada na obra de Takashi Homma faria prever a viragem operada em "The Narcissistic City". O seu último livro ensaia o princípio e o fim da fotografia, escreve Humberto Brito.


Editora: Mack
Páginas: 112
Preço: 55€ (mackbooks.co.uk)
Muitas das imagens de The Narcissistic City (Mack, 2016), do fotógrafo japonês Takashi Homma (n. 1962), são imagens invertidas de fileiras e partes de edifícios. Sendo, além disso, a maioria delas, indistintas, ou mesmo dissolutas, deixadas aos caprichos da química num dado tempo de exposição, são imagens da própria duração, o que lhes confere uma calma peculiar. Por um lado, Homma recua neste livro aos rudimentos da fotografia, à câmara escura, isto é, a uma tecnologia do séc. XIX para um fenómeno óptico descrito e testado por cientistas desde o séc. V a.C. (o da imagem invertida que resulta, numa divisão completamente escura, da propagação rectilínea da luz natural através de uma abertura muito estreita). Por outro lado, há um investimento eloquente no processo de edição, em parte, numa homenagem sem subterfúgios a Robert Frank. Emulando montagens da sua obra-prima menos mencionada, The Lines of My Hand (1972, 1989), Homma adopta como refrão a frase “Sick of Goodby’s”, evocando a imagem “Sick of Goodby’s, Mabou, 1978” — uma das mais dilacerantes do conjunto (sobre a qual, a propósito, escreveram Lou Reed e Liz Jobey).
Takashi Homma notabilizou-se com o livro Tokyo Suburbia (1998), que lhe valeu o prémio Kimura Ihei em 1999 e a inclusão por Parr e Badger no segundo volume de The Photobook. A sua obra organiza-se, quase por inteiro, em projectos em torno de Tóquio e da vida quotidiana do autor. Em contraste com os heróis errantes do are bure boke, cuja aspereza e libertinagem provocaram no final dos anos 1960 uma clivagem sem retorno na fotografia japonesa do après-guerre, Homma é muitas vezes associado a fotógrafos americanos como William Eggleston, Stephen Shore, ou Robert Adams, vindicando um modo de fotografar habitualmente descrito como ‘fotografia directa’ ou ‘em estilo documental’. Todavia, não deixa de ser no Japão que encontramos parte da sua linhagem: em particular, dois fotógrafos japoneses que a costela totémica de Daido Moriyama relegou para segundo plano: Takuma Nakahira e Yutaka Takanashi, claro está, na sua vida pós-Provoke, de que tinham sido fundadores. O seu trabalho mais recente sugere uma inflexão para outros meios, a julgar por exemplo por RRREECCONNSTRUCCTTT (Goliga Books, 2014): uma performance realizada ao longo de dois dias em Tóquio, durante a qual participantes foram convidados a reconstruir fotografias de Homma a partir de fragmentos fornecidos pelo autor. Essas fotografias recompostas têm — nem que seja no princípio de recomposição — uma afinidade manifesta com a estratégia de construção deste seu último livro, embora sem o seu alcance conceptual.
Como explica a The Japan Times, os seus interesses têm vindo a deslocar-se para a “zona cinzenta entre a arte e a fotografia”.
Não me incomoda se me chamarem fotógrafo. Não é que não estivesse satisfeito com a fotografia como meio de expressão e tivesse começado a pintar ou a aventurar-me na serigrafia. Estou antes a descobrir outros meios como parte do processo de edição (da minha própria fotografia).” “A fotografia clássica é simples fotografia”, prossegue Homma.
“A fotografia contemporânea não é apenas acerca de tirar uma fotografia; é acerca do modo como a apresentamos. A fotografia clássica é acerca de tirar fotografias, a fotografia contemporânea acerca de mostrá-las.” É, nas suas palavras, “uma questão de edição”.

Os limites da fotografia

Seja como for, nada na obra que o notabilizou faria prever a viragem operada em The Narcissistic City. De facto, raramente um fotógrafo arrisca uma viragem com estas proporções. Abjurando a Igreja Universal do Megapixel (que aliás nunca professou), e abdicando da capacidade descritiva do filme em médio e grande formato, que tem vindo a tornar-se o padrão de preferência — para alguns, motivo de tédio — na fotografia contemporânea, Homma decidiu transformar quartos de hotel em grandes câmaras estenopeicas (i.e. pinhole), capturando imagens invertidas das cidades para que estes estivessem virados, expondo filme (a cores e a preto e branco) à luz natural intocada. “A ideia era usar arquitectura para fotografar arquitectura”, explicou à Aperture. Homma levou assim num sentido literal a noção de ‘cidade narcicista’ sugerida por Hubert Damish no livro Skyline: The Narcissistic City (Stanford UP, 2002), para cuja família de perguntas este fotolivro é, antes de mais, uma tentativa de resposta. “Que género de olhar a cidade legitima? Que género de olhar induz, determina, informa, programa, organiza? Que género de olhar, para lá daquele que o sujeito é capaz de virar sobre si mesmo, consegue a máquina-cidade, por intermédio do ‘sujeito’, virar sobre si mesma?”
Não deixa de ser digno de nota, e até irónico, que o resultado deste literalismo a respeito da ‘cidade narcisista’ seja, no fim de contas, um tropo: um tropo da história da fotografia. Não existe história da fotografia independentemente da cidade e de cidades — independentemente da relação da fotografia e de quase todos os grandes fotógrafos com a cidade ou com uma ou duas cidades particulares, incluindo aqueles que se interessaram mais pela periferia e interstícios, ou aqueles que passaram a vida a fotografar ‘natureza’. (Por detrás do seu repúdio da polis existe, em parte, quase sempre, uma intolerância ao poder. A bem dizer, a deriva necessária à fotografia — seja pela cidade, pela periferia, por descampados, pela floresta, a pé, de carro, etc. — talvez constitua ela mesma um gesto de emancipação da polis entendida como esquema de poder e enquanto esquema económico inescapável: uma pretensão de soberania do fotógrafo a respeito da sua relação com a luz e as coisas.) Por outro lado, deixámos de ser capazes de imaginar o que seja a cidade moderna independentemente do legado fotográfico e dos modos como este pensou e estabeleceu a representação dos centros urbanos no último século e meio.
No fundo, a fotografia recorta e aponta. Dito de maneira simples, ela aponta para aquilo — e através daquilo — que recorta. O facto de que recorta é o que a distingue, por exemplo, da pintura (que, por contraste, envolve, a cada imagem, uma construção criativa). Por muito que as usemos e interpretemos de várias maneiras, por muito que as organizemos em conjuntos eles mesmos construções criativas sucedâneas (exposições, livros, séries, sequências, etc.), e ainda por pouco fiáveis que as imagens fotográficas possam ser para explicar por si mesmas seja aquilo que for, elas têm, para todos os efeitos, uma capacidade indexical inelidível. Elas indicam uma fatia do mundo num dado momento, por assim dizer. Ora, existe assim uma razão mais específica para que do literalismo de Takashi Homma a respeito da ‘cidade narcisista’ resulte um tropo da história fotográfica. Em The Narcissistic City, Homma interfere na relação estável entre câmara obscura e mundo exterior. Celebrando os rudimentos da fotografia, usa-os para dinamitar duas propriedades fundamentais da fotografia, numa acepção clássica: a sua indexicalidade e a sua vocação analítica. O seu último livro ensaia, por isso, nada menos que o princípio e o fim da fotografia.

A fotografia e a cidade


Capturadas em diferentes quartos de hotel de diferentes cidades em dois países distintos, as imagens da “cidade” apresentadas não são imagens de qualquer cidade existente. São, antes, partes de uma montagem: partes de uma cidade-simulacro. Ghirri escreveu uma vez que a realidade se assemelhava a uma grande fotomontagem. A cidade-simulacro construída por Homma materializa esta percepção, dá-lhe a forma de um livro; além disso, comenta-a. Evocando uma faixa mais ou menos conhecida dos The Beatles, “Revolution 9”, uma colagem sonora inspirada em composições de Varèse e Stockhausen (em torno da qual correm os rumores mais delirantes), Homma sublinha, por um lado, que este livro deve ser entendido como um puro artefacto de estúdio. (Esgotada a via indexical, talvez procure com isto esboçar um caminho possível para o futuro da fotografia.) Por outro lado, retomando as perguntas de Damish, é por referência a “Revolution 9” que o autor descreve a natureza monótona, repetitiva, melancólica e meio perturbadora do olhar fotográfico ‘determinado’ pela cidade, por uma cidade sobressaturada de imagens de si mesma. Uma repetição que se comuta, auto-engendra e se reconfigura por paralaxe — trazendo à memória a cidade contínua de Calvino. Salientando o envolvimento do leitor, a própria estrutura do livro, uma astuciosa interpolação de imagens e desdobráveis, de que aparece aos poucos uma paisagem e arquitectura de estúdio, lembrando — muito embora as imagens tenham sido capturadas de câmaras fixas — o percurso de um fotógrafo a pé por qualquer cidade, o seu envolvimento com constrangimentos. Além disso, a estrutura do livro (à semelhança da arquitectura e topografia de uma cidade) determina um ritmo. Não me parecendo que chegue a tratar-se de uma instrução directa ao leitor, esse ritmo é no entanto explicitado pela audição de “Revolution 9” ao mesmo tempo que se folheia The Narcissistic City.
Claro está que o ponto de vista impensado, intransitivo, não-humano, na perspectiva do qual nos é apresentada aqui uma cidade como capturada na câmara escura (i.e. antes de qualquer decomposição ou filtragem subsequente: antes de qualquer jogo de lentes, prisma, filme, sensor, revelação, ampliação, etc.) — o de uma cidade vista na perspectiva dos seus edifícios, tornados câmaras habitáveis — é, em si mesmo, uma construção de estúdio. Usando arquitectura disponível para simular um ponto de vista cujas condições de possibilidade apenas podemos conceber por um golpe de imaginação, esta cidade-simulacro enjeita a remissão para quaisquer edifícios localizáveis, a não ser que se inventem mapas e uma topografia. Mesmo edifícios reconhecíveis parecem destituídos da sua capacidade icónica. No fim de contas, qual o nome desta cidade compósita? Como se chega lá? Onde estão os hotéis que dão para tais vistas? Quem manda nela? Qual a sua moeda? Que instituições a governam? Ainda que estas perguntas possam soar pouco tolas, nada nos impede no entanto de fazer uma pergunta muito parecida: onde está, nessa cidade, o poder? É espantoso verificar nessa altura que podemos não saber mais nada a respeito de uma cidade, mas sabemos mais ou menos identificar onde reside o poder, apontando para a arquitectura e para as superfícies.

Acaso e intenção

Recapitulando, este livro — que me parece a todos os títulos extraordinário — alcança o triunfo paradoxal de unir o princípio e o fim da fotografia, usando a câmara obscura para uma finalidade não representacional (pelo menos, não no sentido comum do termo: a cidade apresentada não é uma cópia do mundo). Ambivalente e belíssima, a paleta minimal oscila ora no preto e branco ocasionalmente liquefeitos, ora se dilui, entre as dominantes ciano e magenta, para os verdes-escuros, os azuis-céu, os turquesas, ou para tonalidades de rosa, sendo pontuada uma única vez por amarelo. Nas mesmas declarações à Aperture, Homma explica que “Expor filme a cores à luz natural, em vez de o expor a luz filtrada por uma lente, produz tons que nunca vira antes”. Explica ainda que uma das inspirações deste livro é o ensaio clássico de Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra (1933) [publicado em português pela Relógio D’Água]: “O mundo tem hoje excesso de luz (…) Criar escuridão é em si mesmo uma coisa especial. Quando transformamos uma divisão inteira uma câmarapinhole, afastamo-nos subtilmente da ideia de que estamos a tirar a fotografia. A fotografia não é o resultado unilateral das tuas acções e deixa de ser claro qual será o resultado antes que o processo termine.”
Na verdade, se alguém propuser que o recurso a câmaras pinhole montadas em quartos de hotel pode aqui ser levado como uma homenagem ou uma reinterpretação onerosa da estética are bure boke que marcara a geração anterior da fotografia japonesa, a minha resposta será que tal não me parece inteiramente despropositado. As perguntas feitas pelos fotógrafos da Provoke em 1968 eram justamente o género de perguntas suscitadas por este livro de Takashi Homma: eram um questionamento da possibilidade do realismo e da auto-expressão em fotografia. The Narcissistic City é marcado por uma tensão principal. Por um lado, procura deixar que a fotografia aconteça — que resulte, não de um encadeamento de decisões racionais orientado para imagens realistas (cópias muito precisas da realidade), mas de um encadeamento de decisões noutra direcção: a de preparar condições para que a subjectividade, ou o ponto de vista pessoal do fotógrafo, não interfira, ou interfira o mínimo possível, na fotografia; reunir condições para a obra do acaso, digamos assim. Desse ponto de vista, podemos alinhá-lo legitimamente com o espírito da lendária Provoke.
Por outro lado, existe um investimento incondicional numa arte da edição, o que torna cada elemento deste livro um produto da escolha e de pensamento. Acaso e intenção. Mas não é a fotografia, sempre, de algum modo, aliás como a vida, um compromisso entre acaso e intenção? Homma parece limitar-se a isolá-los do ponto de vista metodológico, chamando a atenção para o que não é um paradoxo, mas condição de possibilidade da fotografia, o que quer que esta seja. No modo como Takashi Homma a usa neste livro, a frase de Frank — “Sick of Goodby’s”— exprime talvez uma ideia a respeito da natureza das cidades: nelas decorre, a qualquer altura, uma inexorável sincronia de vectores desencontrados, o que as torna contínuas arenas de despedida. Pode ser que ela exprima, além disso, a constatação comovida do desaparecimento iminente de uma geração de fotógrafos. Mas não deixo de imaginar que exprime sobretudo um lamento pelo facto de a fotografia ser constitutiva e inescapavelmente uma despedida: nas palavras de Frank, “as fotografias tornam tudo imediatamente velho”. A fotografia contemporânea, tal como entendida por Homma e muitos outros, parece interessada em emendar este facto. No entanto a emenda é, ela mesma, neste caso, uma extraordinária ode à fotografia.
http://observador.pt/2016/08/14/uma-ode-a-fotografia/

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